Ela nasceu lesma, vivia no meio das lesmas, mas
não estava satisfeita com sua condição. Não passamos
de criaturas desprezadas, queixava-se. Só somos
conhecidas por nossa lentidão. O rastro que deixaremos
na História será tão desprezível quanto a gosma que
marca nossa passagem pelos pavimentos.
A esta frustração correspondia um sonho: a lesma
queria ser como aquele parente distante, o escargot.
O simples nome já a deixava fascinada: um termo
francês, elegante, sofisticado, um termo que as pessoas
pronunciavam com respeito e até com admiração.
Mas, lembravam as outras lesmas, os escargots são
comidos, enquanto nós pelo menos temos chance de
sobreviver. Este argumento não convencia a insatisfeita
lesma, ao contrário: preferiria exatamente terminar sua
vida desta maneira, numa mesa de toalha adamascada,
entre talheres de prata e cálices de cristal. Assim como
o mar é o único túmulo digno de um almirante batavo,
respondia, a travessa de porcelana é a única lápide
digna dos meus sonhos.
SCLIAR, M. Sonho de lesma. In: ABREU, C. F. et al.
A prosa do mundo. São Paulo: Global, 2009.
Incorporando o devaneio da personagem, o narrador
compõe uma alegoria que representa o anseio de
rejeitar metas de superação de desafios.
restaurar o estado de felicidade pregressa.
materializar expectativas de natureza utópica.
rivalizar com indivíduos de condição privilegiada.
valorizar as experiências hedonistas do presente.
VODO O