Texto IX
Entra uma beata ou uma feiticeira e assim que vão
subindo a escada já vão fazendo o sinal da cruz;
melhor fora que o doente se benzera destes
médicos. "Deus seja nesta casa, as almas santas nos
guiem, a virgem Maria nos ajude, o anjo São Rafael
nos encaminhe [...] não se fie nos médicos
humanos, confie somente nas orações das devotas,
que só estas chegam aos céus. Mande jogar na rua
esta botica, que não entre aqui se não água benta e
erva de são João, mal tenha quem tanto mal lhe fez
[...] está enfeitiçado até os olhos [...] pendure no
pescoço uma raiz de aipo, faça uns lavatórios de
erva-bicha, arruda, funcho, tudo cozido em água-
benta [...] mande rezar uma missa às almas, não
guarde suas medicinas para as maleitas, porque o
mal que vossa mercê tem, eu conheço.
(Brás Luis de Abreu citado por Mary Del Priori in Magia e
Medicina na Colônia: Corpo Feminino. Del Priore, Mary e
Bassanezi, Carla (coord. ) História das Mulheres no Brasil, São
Paulo: Contexto, 2007. p-107)
As mulheres que rezavam e curavam doentes
foram consideradas malditas e perigosas pelos
representantes do saber institucional. Tais
práticas puderam ser encontradas em
processos movidos pela inquisição contra
mulheres no Brasil Colonial sob a acusação de
práticas de curas mágicas e adivinhação do
futuro. Isto porque:
Oa medicina se tomara a legítima
representante dos tratamentos de doenças
tropicais. O uso das ervas e de rezas
comum nas práticas das benzedeiras e de
curandeiros era considerado primitivo e sem
efeito nenhum sobre os doentes, que foram
proibidos de receber em suas casas as
benzedeiras.
O os médicos e boticários entendiam que as
práticas destas mulheres estavam
associadas às crenças afro-indígenas de
invocação de espíritos. Além disto, tais
procedimentos depunham contra a colônia
portuguesa que era católica e não admitia
desvios doutrinários.
O a religiosidade colonial era de matriz
indígena, com um forte apelo às práticas
xamânicas. Tais crenças dificultavam a ação
colonizadora dos portugueses, que eram
católicos e defendiam a formação de uma
comunidade de fiéis à Igreja e a Coroa
Portuguesa.
O a naturalidade e a intimidade com que
tratavam as doenças tornavam-nas vitimas
de acusação de curandeirismo. Por
possuírem um saber que escapava do
controle da igreja e da medicina, elas eram
perseguidas e em alguns casos foram
levadas ao Tribunal do Santo Ofício.
O o hibridismo religioso presente nestas
práticas ameaçava a hegemonia católica na
Colônia. As autoridades — eclesiásticas
temiam que a população abandonasse a
Igreja e que as beatas e feiticeiras
formassem — comunidades religiosas
autônomas.