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Texto3
Odabeb
Contam de Murilo Mendes que um dia ele ia passando com um amigo por uma rua de Botafogo
quando viu uma mulher na janela de um sobrado. Deu uma coisa no poeta, ele se deteve na calçada
fronteira, ergueu o braço e gritou:
- Meus parabéns, minha senhora. Está uma coisa belíssima! Mulher na janela! Há muito tempo
não se via! Está belíssimo!
A senhora, assustada, fechou a janela bruscamente, achando que estava diante de um louco. Mas
o poeta prosseguiu seu caminho com o sentimento do dever cumprido.
Também contam que um bêbado ia pela rua e um enorme jacaré ia atrás dele. Cada vez que o
homem entrava em um bar o jacaré gritava: bêbado! Quando o homem saía de um bar para entrar em
outro, o jacaré gritava outra vez: bêbado! Até que uma hora o homem perdeu a paciência, agarrou o
jacaré pelos queixos e o virou pelo avesso, jogando-o a um canto da calçada. Quando saiu do bar o
Jacaré lhe disse - odabeb! - que é bêbado de trás para diante, Há outras histórias, mas penso nessa.
Não matamos o nosso jacaré, nem nenhum outro bicho; apenas o que fazemos é virá-lo pelo
avesso, o que é lamentável, mas ineficiente.
E a última mulher na janela foi lá dentro atender ao telefone. Os prédios são altos e se espreitam
traiçoeiramente com binóculos na sombra. E como todo mundo tem mais o que fazer, os poetas se
tornam incômodos. Virá-los pelo avesso não é solução. Eles não silenciam - e você, que não entende os
versos, pensa que ele não está querendo dizer nada. Mas "se meu verso não deu certo foi teu ouvido que
entortou", disse um mestre. Os pintores também foram virados pelo avesso, mas continuam a pintar
tudo tão insistentemente que, vendo suas telas, uma pessoa mal informada pode pensar que o mundo é
que foi virado ao contrário.
BRAGA, Rubem. "Odabeb” [abril de 1951]. In: A borboleta amarela. 5a edição. Rio de Janeiro: Record,
1980; p. 72-73.
O texto “Odabeb”, de Rubem Braga, é uma crônica. Escreva duas características desse gênero textual,
retirando um exemplo do texto para ilustrar cada uma delas.