Parado, com a colher suspensa sobre a bancada de aço inox, o sujeito atravancava minha
passagem. la enfiá-la no pote de ervilhas, arremeteu, pousou-a na bandeja de beterrabas, levantou
uma rodela, soltou-a, duas gotas vermelhas respingaram no talo de uma couve-flor. Fosse mais
para trás, lá pela travessa do agrião, eu poderia ultrapassá-lo e chegar aos molhos a tempo de
colocar azeite e vinagre antes que ele se aproximasse, mas da beterraba aos temperos é um passo
e então seria eu a atrapalhar sua cadência. (Segundo a etiqueta não escrita dos restaurantes por
quilo, a ultrapassagem só é permitida se não for reduzir a velocidade do ultrapassado — o que seria
equivalente a furar a fila).
Tudo é movimento, dizia Heráclito; o mundo gira, a lusitana roda, anunciava a televisão: só
eu não me mexia, preso diante da cumbuca de grãos de bico com atum. Fiquei irritado. Aquele
homem hesitante estava travando o fluxo de minha vida, dali para frente todos os eventos estariam
quinze segundos atrasados: da entrega desta crônica ao meu último suspiro.
PRATA, A. À zona do agrião. Estadão, 23 dez. 2008. Disponível em: . Acesso em: 30 mar.
2018.
Narrada na primeira pessoa do singular, a crônica parte de um evento corriqueiro na fila de
um restaurante por quilo para elaborar uma reflexão sobre a passagem do tempo. No texto, a função
metalinguística da linguagem é evidenciada no fragmento
A) “Segundo a etiqueta não escrita dos restaurantes por quilo, a ultrapassagem só é permitida se
não for reduzir a velocidade do ultrapassado [...].'
B) “[...] dali para frente todos os eventos estariam quinze segundos atrasados: da entrega desta
crônica ao meu último suspiro.”
C) “Parado, com a colher suspensa sobre a bancada de aço inox, o sujeito atravancava minha
passagem.”
D) “Tudo é movimento, dizia Heráclito; o mundo gira, a lusitana roda, anunciava a televisão [...].'