Tudo no mundo começou com um sim. Uma molécula
disse sim a outra molécula e nasceu a vida. Mas antes da
pré-história havia a pré-história da pré-história e havia o
nunca e havia o sim. Sempre houve. Não sei o quê, mas
sei que o universo jamais começou.
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Enquanto eu tiver perguntas e não houver resposta
continuarei a escrever. Como começar pelo início, se as
coisas acontecem antes de acontecer? Se antes da pré-
pré-história já havia os monstros apocalípticos? Se esta
história não existe, passará a existir. Pensar é um ato.
Sentir é um fato. Os dois juntos — sou eu que escrevo o
que estou escrevendo. [..] Felicidade? Nunca vi palavra
mais doida, inventada pelas nordestinas que andam por
aí aos montes.
Como eu irei dizer agora, esta história será o resultado
de uma visão gradual — há dois anos e meio venho aos
poucos descobrindo os porquês. É visão da iminência de.
De quê? Quem sabe se mais tarde saberei. Como que
estou escrevendo na hora mesma em que sou lido. Só não
inicio pelo fim que justificaria o começo — como a morte
parece dizer sobre a vida — porque preciso registrar os
fatos antecedentes.
LISPECTOR, G, A hora da estrato do Janeiro: Rocco, 1986 (ragmento)
A elaboração de uma voz narrativa peculiar acompanha
a trajetória literária de Clarice Lispector, culminada com
a obra A hora da estrela, de 1977, ano da morte da
escritora. Nesse fragmento, nota-se essa peculiaridade
porque o narrador
O observa os acontecimentos que narra sob uma
ótica distante, sendo indiferente aos fatos e às
personagens.
O relata a história sem ter tido a preocupação de
investigar os motivos que levaram aos eventos que
a compõem.
@ revela-se um sujeito que reflete sobre questões
existenciais e sobre a construção do discurso.
admite a dificuldade de escrever uma história em razão
da complexidade para escolher as palavras exatas.
@ propõe-se a discutir questões de natureza filosófica e
metafísica, incomuns na narrativa de ficção.
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